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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O bigode amarelo de FLAUBERT



Primeiro do ano de 2011, larguei o cigarro, pela segunda vez. Há a teoria de que a abstinência vinga na quinta tentativa.

Estou me adiantando, não sei se conseguirei ou repetirei o fracasso. Antecipo desculpas. Não é fraqueza, é covardia. Não tento ser melhor do que sou, só procuro não me piorar.

As noites têm sido infernais, infantis, sonho que roubo baganas do lixo. Até no sonho não posso mais fumar.

Gemo, grito e desaforo, apesar do adesivo e do Diazepam.

Apresento baqueteamento digital (meus dedos viraram baquetas), o primeiro sinal de enfisema. Meu avô materno morreu exatamente disso.


Careço de oxigênio no corpo. Fui um asmático que zombou das estatísticas. Agora tenho a consciência de que não serei a exceção, não escaparei ileso como acreditava, Deus não me protegerá, não vale invocar exemplos como o de Mario Quintana que ultrapassou os 80 anos disfarçando seus suspiros.

Poetizar o cigarro não perfumará o cadáver.

Não adianta mais justificar que ele era meu aparelho de dentes, a gola rolê do rosto, meu fog londrino, minha adolescência, minha barba ruiva, meu mistério, o elevador da respiração.

Não adianta alegar que ele me amadureceu, me enturmou, me arrumou namorada.

Não adianta insistir em desvairadas fantasias, de que ele ocupava as mãos, ajudava a escrever.

Humphrey Bogart, Joyce, Sartre, André Gide e James Dean não estão aí para me emprestar fogo, meus fiadores morreram.

Verdade seja dita, o cigarro não preservava minha timidez, cultivava minha insegurança (a timidez costuma ser segura de si).

Tornava-me ainda mais agressivo. Retirar o cigarro de mim é como roubar, a cada cinco minutos, o osso de um cachorro.

Tampouco curava minha ansiedade, ficava bem mais nervoso. O cigarro cria nervosismo para nos iludir em seguida de que nos tranquiliza.

Ele é a própria ansiedade. Estava numa conversa e me desligava do assunto para planejar a saída. Eu fugia com frequência de mim pensando que fugia dos chatos.

Não gostava de viver, gostava de fumar. Não dá para fazer os dois. A gente descobre isso quando para.

Não vou me consolar com atenuantes. Um dos erros é negociar com o terrorista. Não posso pedir para descartar os cigarros inúteis e manter somente os fundamentais: aqueles do despertar, do almoço, da janta e do sono. Sinto falta de todos os cigarros. Para falar ao telefone, necessitava fumar. Para sair, necessitava fumar. Antes do cinema, necessitava fumar. Depois do sexo, necessitava fumar. Depois e antes de tudo, necessitava fumar.

Por isso, fumar um é fumar novamente todos. Não é brincadeira. Não há meio-termo.

Se acho triste me desfazer dos meus doze isqueiros engraçados e dos cinco cinzeiros extravagantes, mais triste é se desfazer de mim.

O que me apavora é o alto grau de dependência. Sou uma reunião de condomínio de 4.700 substâncias tóxicas. Definir o elemento que me magnetizou é tão complicado como desvendar a origem de uma alergia.

Guardava uma tabela periódica na boca. A nicotina é a menos perigosa. Será que tenho saudade da acetona: usada para remover esmalte? Ou da tirebina: substância que dilui tinta a óleo? Ou do formol: conservante de cadáver? Ou da amônia: desinfetante para pisos, azulejos e privadas? Ou da naftalina: eficiente para matar baratas? Ou do monóxido de carbono: o mesmo que sai do cano de descarga dos automóveis? Ou dos agrotóxicos usados no cultivo da folha de tabaco? Ou dos metais pesados: encontrados em baterias de carro?

Duvide das facilidades, da força de vontade, do poder da mente. O alcatrão é fundo como um trauma. E delicioso.

Consumia quarenta cigarros por dia e respondia que tinha sido vinte. É simples descobrir a realidade do fumante: duplique o que ele confessa e chegará ao número preciso.

O fumante é mentiroso — eu mais do que os outros.

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